Thursday, July 16

Branco

Despertei... com uma súbita vontade de pintar um quadro. Ainda meio entorpecido, destaquei minhas mais belas tintas e ensaiei alguns traços... Concentrei bem meus olhos e... Sumiu!

Onde foi parar minha inspiração? Não poderia continuar sem ela. Todos os artistas precisam de uma!

Fechei novamente os olhos, tentei pensar – caminho errado, como se pode racionalizar pensamentos e sentimentos abstratos? Foi o meu primeiro erro... do dia. A essa hora da madrugada! Coloquei, então, uma música para tocar, minha preferida – pelo menos eu acho era, já não sei; alguma coisa me atingiu o peito naquele momento. Alguma coisa errada – um segundo erro!

Pensava em tudo, e em nada... Via rostos, vozes, cores, átomos e estrelas, mas apenas por um centésimo de segundo, não era o bastante para ficar na minha memória – terceiro erro, eu sabia que meus sentidos reteriam tudo, que se cravaria nas entranhas da minha mente e não sairia sem levá-la junto.

Tentei imaginar – agora sim acho que agi certo – o porquê de tanta revolta contra rostos, vozes e átomos. Talvez por serem todos parte de mim; talvez por ser eu parte deles e nos destoarmos tanto. Mas eu os amo! A todos! E me odeio também por vulgarizar tão passivamente esse sentimento tão sublime. Por que não consigo pintar? Só consigo ficar inerte, mirando esta tela branca... branca! Será que estou errado em procurar a inspiração? Será que é ela quem deve me encontrar?

Fui molhar o rosto para me acalmar... Meu rosto já estava já estava molhado!? Meus olhos inchados, semi-abertos, minha pele branca como uma chama há muito extinta – Será que era realmente eu? Não, era um pesadelo-morto que ali me atormentava. Reagi. Desferi-lhe um forte golpe e – um barulho distante, como se alguém me acertasse a janela com uma pedra... ! Ele sumiu! Só ficou uma mancha vermelha no lugar. Mas quem pintou aquela figura ali? Olho para minhas mãos, tinta escarlate... Fui eu quem pintou aquela mancha, aquele borrão?!... um coração! Sim, parecia um coração, deve ter sido isso. Ah, a inspiração!

Corri para tela – ainda branca – pois precisava pintar.

Acho que as luzes se apagaram nesse instante - não conseguia andar sem esbarrar nas paredes e no solo.

Tocou o telefone, a princípio baixo, mas o volume ia aumentando. Atendi – ou não?! Não lembro se cheguei a atendê-lo. Ouvi uma voz conhecida que começava a me dizer palavras vazias e queria que eu acreditasse – que eu respondesse – mas não podia dizer nada. Não poderia aceitar, pois eram mentiras – tampouco poderia negá-las, pois repudiar a verdade contida na beleza do som daquelas palavras significaria esfacelar todos os alicerces sobre os quais minha existência foi sendo forjada.

Tentei olhar pela janela, esquecer. O céu estava feio, esfumaçado, fechado – sem luz, sem estrelas, sem vida – e acho que chovia. Oito andares abaixo, eu via o mar negro e intimidador, que escondia terríveis bestas cujos olhos iluminados o cortavam a cada instante.

Como poderia me inspirar, pensar em amor, vendo um quadro morto através desta tela de vidro?

Tive uma inspiração derradeira! Bastava mudar esse quadro aterrorizante e deletério; ousar experimentar uma vertente ainda inexplorada e sublimar a própria essência daquela tela... Quebrei-a! Atirei contra a mesma o que de mais podre eu possuía ao alcance de minhas mãos...

E lá embaixo meu corpo afogou-se na rigidez negra do asfalto.

Oito andares acima, repousava uma impassível e indecifrável tela branca.

 

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